Ultrapassadas as tensões referentes ao julgamento, pelo STF, da ADI 4277 nos dias 04 e 05 de maio de 2011, procedemos à avaliação da decisão, baseada, essencialmente, nos votos proferidos pelos Ministros da Corte Superior. Para tanto, fizemos a leitura de todas essas manifestações divulgadas no site do próprio Tribunal, veículo informativo oficial que é. Pois bem.
1. Os votos dos Ministros
Segundo o Min. Ayres Brito (http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277.pdf), “o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica”. (grifo no original) Ainda, enfatiza que o “conceito de família”, entabulado no caput do art. 226 da CRFB/88, “deve servir de norte para a interpretação dos dispositivos em que o capítulo VII se desdobra”, pontuando: Mas tanto numa quanto noutra modalidade de legítima constituição da família [casamento e união estável], nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade, de protagonização por pessoas do mesmo sexo. Desde que preenchidas, também por evidente, as condições legalmente impostas aos casais heteroafetivos.
A afirmação do ministro é uma resposta ao argumento de que a Constituição somente permitiria o reconhecimento da união entre um homem e uma mulher e que a alteração dessa interpretação dependeria de uma emenda do Congresso. Segundo o ministro Fux, a consequência direta de a Constituição estabelecer, entre outros princípios, que todos os seres humanos são iguais perante a lei, é a de que os casais homossexuais formam, perante a lei, uma união estável comparável à família.
Mas é exato que a referência expressa a homem e mulher garante a eles, às expressas, o reconhecimento da união estável como entidade familiar, com os consectários jurídicos próprios. Não significa, a meu ver, contudo, que se não for um homem e uma mulher, a união não possa vir a ser também fonte de iguais direitos. Bem ao contrário, o que se extrai dos princípios constitucionais é que todos, homens e mulheres, qualquer que seja a escolha do seu modo de vida, têm os seus direitos fundamentais à liberdade, a ser tratado com igualdade em sua humanidade, ao respeito, à intimidade devidamente garantidos.
Para ser digno há que ser livre. E a liberdade perpassa a vida de uma pessoa em todos os seus aspectos, aí incluído o da liberdade de escolha sexual, sentimental e de convivência com outrem.
(...)
Aqueles que fazem opção pela união homoafetiva não pode ser desigualado em sua cidadania. Ninguém pode ser tido como cidadão de segunda classe porque, como ser humano, não aquiesceu em adotar modelo de vida não coerente com o que a maioria tenha como certo ou válido ou legítimo.
No mesmo passo, o Min. Ricardo Lewandowski (http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277RL.pdf), citando o julgamento do RE 397.762/BA, informa que a Min. Cármen Lúcia afirmara que, no que toca a união estável, “a Constituição quer que um homem e uma mulher possam unir-se e que essa união, adquirindo estabilidade, possa vir a se converter em casamento”. Ainda, considerou: Assim, segundo penso, não há como enquadrar a união entre pessoas do mesmo sexo em nenhuma dessas espécies de família [elencadas no art. 226], quer naquela constituída pelo casamento, quer na união estável, estabelecida a partir da relação entre um homem e uma mulher, quer, ainda, na monoparental.
(...)
Com efeito, a ninguém é dado ignorar – ouso dizer - que estão surgindo, entre nós e em diversos países do mundo, ao lado da tradicional família patriarcal, de base patrimonial e constituída, predominantemente, para os fins de procriação, outras formas de convivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais se valoriza, de forma particular, a busca da felicidade, o bem estar, o respeito e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes.
Em sua análise, outrossim, cita o §4º do art. 226 – “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” – argumentando que a expressão “também” é capaz de colocar o rol de famílias preconizado pelo aludido artigo como exemplificativo, e não exaustivo.
No que toca à tramitação do texto na Assembléia Constituinte, declara:
Verifico, ademais, que, nas discussões travadas na Assembléia Constituinte a questão do gênero na união estável foi amplamente debatida, quando se votou o dispositivo em tela, concluindo-se, de modo insofismável, que a união estável abrange, única e exclusivamente, pessoas de sexo distinto.
(...)
Os constituintes, como se vê, depois de debaterem o assunto, optaram, inequivocamente, pela impossibilidade de se abrigar a relação entre pessoas do mesmo sexo no conceito jurídico de união estável. Não há, aqui, penso eu, com o devido respeito pelas opiniões divergentes, como cogitar-se de uma de mutação constitucional ou mesmo de proceder-se a uma interpretação extensiva do dispositivo em foco, diante dos limites formais e materiais que a própria Lei Maior estabelece no tocante a tais procedimentos, a começar pelo que se contém no art. 60, § 4º, III, o qual erige a “separação dos Poderes” à dignidade de “cláusula pétrea”, que sequer pode ser alterada por meio de emenda constitucional.
(...)
O que se pretende, ao empregar-se o instrumento metodológico da integração, não é, à evidência, substituir a vontade do constituinte por outra arbitrariamente escolhida, mas apenas, tendo em conta a existência de um vácuo normativo, procurar reger uma realidade social superveniente a essa vontade, ainda que de forma provisória, ou seja, até que o Parlamento lhe dê o adequado tratamento legislativo.
Ao final, aponta que,
para que sejam aplicadas às uniões homoafetivas, caracterizadas como entidades familiares, as prescrições legais relativas às uniões estáveis heterossexuais, excluídas aquelas que exijam a diversidade de sexo para o seu exercício, até que sobrevenham disposições normativas específicas que regulem tais relações.
o fundamento constitucional para o reconhecimento da união homoafetiva não está no artigo 226, parágrafo 3º - visivelmente destinado a regulamentar uniões informais entre homem e mulher -, mas em todos os dispositivos constitucionais que estabelecem a proteção dos direitos fundamentais.
(...) a Constituição Federal não cita, nem proíbe o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas, mas a própria Carta estabelece que o rol de direitos fundamentais do cidadão não se esgota naqueles expressamente elencados por ela.
Para o Min. Gilmar Mendes (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178918), “a ideia de opção sexual está contemplada na ideia de exercício de liberdade e do direito de cada indivíduo de autodesenvolver sua personalidade. Ele acrescentou que a falta de um modelo institucional que proteja casais homossexuais estimula a discriminação.” o § 3º desse artigo expressamente impôs ao Estado a obrigatoriedade de reconhecer os efeitos jurídicos às uniões estáveis, dando fim à ideia de que somente no casamento é possível a instituição de família. Revela-se, então, a modificação paradigmática no direito de família. Este passa a ser o direito “das famílias”, isto é, das famílias plurais, e não somente da família matrimonial, resultante do casamento. Em detrimento do patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos centrais de caracterização da entidade familiar. Alterou-se a visão tradicional sobre a família, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena comum.
(...)
A afetividade direcionada a outrem de gênero igual compõe a individualidade da pessoa, de modo que se torna impossível, sem destruir o ser, exigir o contrário. Insisto: se duas pessoas de igual sexo se unem para a vida afetiva comum, o ato não pode ser lançado a categoria jurídica imprópria. A tutela da situação patrimonial é insuficiente. Impõe-se a proteção jurídica integral, qual seja, o reconhecimento do regime familiar.
(...)
Vale dizer: ao Estado é vedado obstar que os indivíduos busquem a própria felicidade, a não ser em caso de violação ao direito de outrem, o que não ocorre na espécie. Certamente, o projeto de vida daqueles que têm atração pelo mesmo sexo resultaria prejudicado com a impossibilidade absoluta de formar família. Exigir-lhes a mudança na orientação sexual para que estejam aptos a alcançar tal situação jurídica demonstra menosprezo à dignidade. Esbarra ainda no óbice
constitucional ao preconceito em razão da orientação sexual.
Por fim, o Presidente da Corte, Min. Cezar Peluso (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178946) “considerou que as normas constitucionais - em particular o artigo 226, parágrafo 3º da Constituição Federal - não excluem outras modalidade de entidade familiar”, bem como reconheceu “a existência de uma lacuna normativa que precisa ser preenchida (...) diante, basicamente, da similitude, não da igualdade factual em relação a ambas as entidade de que cogitamos: a união estável entre homem e mulher e a união entre pessoas do mesmo sexo”.
Feitas essas anotações, passemos à análise pormenorizada.
2. As avaliações possíveis a partir dos votos
De fato, no plano normativo, temos que a interpretação do art. 1.723 do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/02) deve estar acorde com o disposto no art. 226, §3º, da Constituição da República, por uma regra básica de interpretação: a maior hierarquia do texto Magno. Segundo o preceito constitucional, “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
Outrossim, os princípios constitucionais alegados para o deferimento da união homossexual (entre outros, dignidade da pessoa humana, igualdade e vedação do preconceito) não podem fazer eliminar os requisitos constitucionalmente declinados para um instituto – como, no caso, a diversidade de sexo. Ora, se, segundo o dispositivo, o Estado deve proteger e reconhecer a união “entre o homem e a mulher”, é evidente que o não o quer fazer em relação às uniões homossexuais! A norma, por princípio hermenêutico, não contem palavras inúteis.
Nestes termos, repise-se, claro nos parece que a dualidade de sexos é, sim, um requisito constitucional. E isso é manifesto, inclusive, do que se colhe da tramitação do texto na Assembléia Constituinte, como salientou o Min. Lewandowski. A intenção do constituinte originário era, cristalinamente, excluir a união homossexual da proteção do Estado. Portanto, fica descabida a ocorrência de inconstitucionalidade originária (numa confrontação do art. 226,§3º com, p. ex., o art. 3º, IV), dada a unidade da Constituição, conforme interpretação corrente da doutrina e do próprio STF.
Além disso, é interessante notar que o Ministro, embora em dado momento postule pela discussão do texto na Assembléia, indique que o método integrador adotado em seu voto é cabível pela busca de se “reger uma realidade social superveniente a essa vontade”. Há, aqui, uma evidente incoerência. Se a tal “realidade social”, ou seja, a união estável homossexual, foi devidamente debatida, como pode ser superveniente àquela? Impossível!
Aludido intérprete, ainda, citando o §4º do art. 226 (“Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”), e baseado no entendimento de Paulo Luiz Netto Lobo, argumenta que a expressão “também” é capaz de colocar o rol de famílias preconizado pelo aludido artigo como exemplificativo, e não exaustivo.
Mais uma vez, razão não lhe assiste. Qualquer um que entenda minimamente da língua portuguesa apontará que o aludido termo tem o condão de, apenas, declinar a “família monoparental” como “entidade familiar”, ao lado do casamento – civil e religioso – e da união estável entre homem e mulher. Não há, aqui, sequer um indício de tal consista em cláusula de abertura.
Nesse passo, nada melhor tratarmos de “língua portuguesa”, que, a teor do art. 13 da Constituição, “é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. Já que, segundo o STF, por não haver vedação expressa (embora já tenhamos nos manifestado pela mesma linhas acima) quanto à união homossexual, deve ela ser reconhecida, dever-se-ia também, em processo próprio, declarar que línguas africanas e indígenas, como o Iorubá e a dos Trumaí, respectivamente, também fossem idiomas oficiais. Como o art. 13 está inserido no Cap. III, “Da nacionalidade”, por sua vez imerso no Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, e considerando os princípios pétreos de igualdade e a vedação dos preconceitos de raça e cor (art. 3º, IV), na forma como posto desde 1988, nessa linha de raciocínio, o mesmo deve ser adequado ao panorama plural de nossa sociedade. E é importante ressaltar que, segundo relatório da FUNAI (http://www.funai.gov.br/indios/conteudo.htm#LINGUAS), “muitos índios falam unicamente sua língua”. Afinal, argumentar-se-ia, são línguas de povos que desde sempre sofrem preconceitos em nossa sociedade, e vem que, em sua nação, sua língua materna não é “respeitada” como oficial.
Ainda, a Corte, unanimemente, foi favorável à união homossexual sob o argumento da liberdade na constituição das famílias, que deve se pautar, também, pela felicidade dos seus membros, pelo respeito ao modus vivendi que quiserem imprimir, pelo bem estar e autodesenvolvimento da personalidade, em relações fundadas na busca de amor, carinho e afeto, desde que não ofendam aos outros.
Nesse panorama, então, estar-se-ia permitindo, por certo, a poligamia e o incesto (uniões entre pais e filhos, irmãos, tios e sobrinhos...), desde que consentido entre seus membros. Pois, já que não provocariam nenhum “mal” a outrem, devem encontrar guarida na “pluralidade de famílias” defendida pelos Ministros.
E mais. Poder-se-á cogitar, inclusive, da liberação da pedofilia, que, segundo alguns estudiosos, é simples “orientação sexual” (http://fenasp.com/site/index.php/category/noticias/page/6 e http://cpf22.blogspot.com/2011/05/psicologo-diz-que-pedofilia-e.html), como o é a hetero e homossexualidade. Há nessa situação, é claro, o dever de proteção das crianças; contudo, no caminho em que andam as coisas, em breve haverá os que defendam que crianças de 12, 10, 8 anos ou menos já não sejam tão “inocentes”, e, portanto, responsáveis e capazes de se decidir por relações sexuais.
Aliás, inclusive, já tem sido esse o argumento albergado nos Tribunais pátrios, por exemplo, quando se exclui a presunção de violência nos crimes de estupro quando a vítima, embora menor de 14 anos (Código Penal, arts. 213 c/c 224, “a”, que, após a Lei 12.015/2009, passou a capitular-se no art. 217-A como “vulnerabilidade”), já tenha “vida sexual ativa”.
3. Conclusão
De todo o exposto, somos, ainda, pela impossibilidade jurídica (leia-se, inconstitucionalidade) do reconhecimento de união estável homossexual, quadro que pode ser alterado apenas através de emenda ao texto constitucional.
Era o que nos cumpria.
Antonio Carlos da Rosa Silva Junior (Juiz de Fora / MG). Bacharel em Direito, Especialista em Ciências Penais e em Direito e Relações Familiares, Mestrando em Ciência da Religião, Presidente do Projeto Desperta, Membro do Juristas de Cristo e da Coordenação Jurídica Nacional da FENASP, Professor, Escritor, Conferencista e autor do site http://www.direitoereligiao.com.br/.